O cristianismo é um humanismo

 Jacques Maritain e o cristianismo como humanismo integral

Referência da imagem: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jacques_Maritain#/media/Ficheiro:Maritain_Jacques.jpg

Jacques Maritain foi um dos grandes pensadores do século XX. Francês, nascido em Paris em 1882, faleceu em 1973, aos noventa anos, em Toulouse, após quase uma década vivendo com os "Pequenos Irmãos de Jesus", congregação inspirada nos ensinamentos de Charles de Foucauld, depois de sua viuvez.

Filósofo cristão e de inclinação tomista, inicia um profundo diálogo com o pensamento de seu tempo. Para Maritain, existem dois tipos de humanismo distintos: o humanismo antropocêntrico, que é o humanismo moderno oriundo do renascimento; e o humanismo teocêntrico, ou verdadeiramente cristão. O que distingue os dois humanismos é que, enquanto o primeiro reivindica que o ser humano como centro do próprio ser humano, o segundo reivindica Deus como centro do ser humano.

É interessante que em sua obra "Humanismo Integral: problemas temporais e espirituais de uma nova cristandade", Maritain não ataca as outras posições, mas procura demonstrar como o humanismo antropocêntrico foi, aos poucos, provocando uma crise na própria concepção de ser humano. Seu projeto, nas palavras do próprio Maritain, pode ser compreendido da seguinte forma:

Este novo humanismo, sem termo de comparação com o humanismo burguês, é mais humano exatamente porque não adora o homem, mas respeita realmente e efetivamente a dignidade humana e reconhece as exigências integrais da pessoa, nós o concebemos como orientado para uma realização social-temporal desta atenção evangélica ao humano que não deve existir somente na ordem espiritual, mas escarnar-se, e também para o ideal de uma comunidade fraterna.(1)


Maritain, portanto, tem um projeto ousado: em diálogo com o pensamento crítico de sua época, como o marxismo e o existencialismo, Maritain quer mostrar que o cristianismo tem relevância diante da crítica de seus opositores e que, longe de uma alienação das necessidades humanas neste mundo, o cristianismo também tem um projeto de reforma na sociedade, fundamentado em um profundo e autêntico humanismo. Tal diálogo crítico com sua época pode ser bem ilustrado na forma como ele rebate a crítica quietista: "um humanismo realmente cristão não imobiliza o homem, nem para o bem, nem para o mal, em nenhum momento de sua evolução"(2).

Dessa forma, para Jacques Maritain, o humanismo cristão retoma aquele ideal que vimos em nosso último texto com Justino e a sua filosofia das "sementes do Logos". O pensamento cristão, mesmo sendo teocêntrico e reconhecendo a soberania do Cristo, nunca é excludente, pois reconhece a presença de elementos de verdade em diversas tradições, filosofia e culturas, mesmo naquelas em que pode-se enxergar erros profundos em sua maioria. Esse é o sentido profundo do humanismo integral, um humanismo comprometido com a formação integral do ser humano e consciente de que ele pode incorporar tudo, pois em Deus não existem limites: "O humanismo cristão, o humanismo integral, é capaz de tudo incorporar, porque sabe que Deus não tem contrário e que tudo é irresistivelmente arrastado pelo movimento do governo divino"(3). Assim, Maritain pode não apenas dialogar, como até mesmo reconhecer elementos de verdade no marxismo, posição bem contrário ao renascimento fundamentalismo cristão contemporâneo, que além de ser dualista (herança típica da modernidade), quebra a vocação universal e integral do cristianismo ao assumir uma postura sectária e intransigente diante do diferente. Como escreveu Maritain:

No sistema do humanismo cristão há lugar, não para os erros de Lutero e de Voltaire, mas para Voltaire e para Lutero na medida em que, apesar desses erros, eles contribuíram na história dos homens para certos crescimentos (os quais pertencem a Cristo, como todo bem que existe em nós). Aceito dever alguma coisa a Voltaire no que concerne à tolerância civil, ou a Lutero no que concerne ao não-conformismo, e respeitá-los por isso; eles existem no meu universo de cultura, e têm nele seu papel e sua função; eu dialogo com eles nesse plano, e, mesmo quando os combato, e quando lutamos sem tréguas, eles continuam vivos para mim.(4)


Essa é para Maritain a diferença entre um humanismo integral e um humanismo não cristão. O segundo, por exemplo, não encontra espaço para as contribuições de Santo Agostinho ou Santa Teresa, por exemplo. Por isso, hoje torna-se central a um tipo de cristianismo contemporâneo que exalta a idade média e a leitura de Tomás, mas que ao mesmo tempo é excludente e intolerante, a leitura de Maritain. Aqui, a leitura de Tomás é uma leitura em diálogo com o seu tempo e com a tradição cristã. É uma leitura integral e integradora. E, mais importante do que tudo isso o que falamos até agora, é uma leitura comprometida com a realidade e com a sua transformação, visando combater a crítica (válida) que o cristianismo sofria e sofre até hoje como forma de alienação. Se o que defendemos, de fato, é um humanismo integral e comprometido com a vida humana (e que muitos gostam de afirmar, desde sua concepção), não podemos esquecer que "em vão se afirma a dignidade e a vocação da pessoa humana se não se trabalha para transformar as condições que a oprimem, e para fazer com que ela possa dignamente comer o seu pão"(5).



(1) MARITAIN, Jacques. Humanismo integral, p. 19.
(2) Ibid, p. 67.
(3) Ibid, p. 101.
(4) Ibid, p. 101.
(5) Ibid, p. 103.


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